
A Importância da Posse no Direito Brasileiro: Função Social, Proteção e Eficácia Jurídica
Introdução
A posse, no Direito Civil brasileiro, é uma instituição que transcende a mera detenção física de um bem. Trata-se de um instituto complexo, dotado de relevância jurídica prática e simbólica, com função social e implicações em diversas áreas do Direito. A posse não se confunde com a propriedade, embora possa ser caminho para sua aquisição, como se verifica nos casos de usucapião ou regularização fundiária.
Para ilustrar, imagine uma família que reside há mais de dez anos em um imóvel urbano sem registro de escritura. Essa família exerce sobre o bem os poderes típicos do proprietário: construiu, reformou, paga tributos, mantém o imóvel em bom estado. Embora não seja formalmente proprietária, a posse exercida configura vínculo legítimo reconhecido pela legislação, com possibilidade de aquisição da propriedade.
Do mesmo modo, um agricultor que ocupa por anos uma terra improdutiva e nela realiza cultivo produtivo, com vistas à sua sobrevivência e geração de riqueza, exerce posse com função social, o que deve ser protegido pelo ordenamento jurídico.
O presente artigo tem por objetivo analisar a natureza jurídica da posse, sua proteção legal, sua relevância na regularização fundiária e suas consequências patrimoniais, com fundamento na legislação vigente, doutrina especializada e jurisprudência consolidada.
1. Conceito e Natureza Jurídica da Posse
Conforme o artigo 1.196 do Código Civil, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Trata-se de um conceito que privilegia o aspecto fático da relação entre o sujeito e a coisa, distinguindo-se da mera detenção (art. 1.198, CC).
A posse pode ser classificada em direta ou indireta, justa ou injusta, de boa-fé ou de má-fé, e ainda, em posse nova ou velha, nos termos do artigo 924 do Código de Processo Civil. A natureza jurídica da posse, embora debatida entre as teorias subjetiva (Savigny) e objetiva (Ihering), no Brasil segue predominantemente a teoria objetiva, conferindo à posse efeitos jurídicos próprios, independentemente do animus domini.
2. Função Social da Posse
A função social da posse é reconhecida implicitamente no artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal, e também no artigo 1.228, § 1º do Código Civil, ao condicionar o exercício do direito de propriedade à sua função social. Assim, a posse exercida com finalidade socialmente relevante deve ser protegida e incentivada pelo ordenamento jurídico, como ocorre nos casos de usucapião, regularização fundiária e ocupações urbanas ou rurais produtivas.
3. Proteção Possessória no Ordenamento Jurídico Brasileiro
O possuidor tem direito à tutela possessória contra turbação ou esbulho, conforme prevêem os artigos 1.210 do Código Civil e 560 a 568 do Código de Processo Civil. São três as principais ações possessórias:
- Ação de reintegração de posse (art. 560, CPC): contra esbulhador.
- Ação de manutenção de posse (art. 560, CPC): contra turbação.
- Ação de interdito proibitório (art. 567, CPC): contra ameaça iminente de turbação ou esbulho.
Além disso, o possuidor pode exercer a autodefesa imediata (art. 1.210, §1º do CC), desde que de forma proporcional.
4. A Posse como Requisito para a Usucapião
A posse prolongada no tempo, com os requisitos legais de boa-fé e continuidade, pode ensejar a aquisição da propriedade por usucapião. Esta é disciplinada em vários dispositivos, como:
- Art. 1.238 do Código Civil: usucapião extraordinária.
- Art. 1.240 do Código Civil: usucapião especial urbana.
- Art. 1.239 do Código Civil: usucapião rural.
- Art. 1.240-A do Código Civil: usucapião familiar.
- Art. 1.260 do Código Civil: usucapião coletiva.
A jurisprudência tem sido favorável à efetivação desses direitos, sobretudo quando voltados à moradia ou produção.
5. A Posse na Regularização Fundiária Urbana (REURB)
A Lei nº 13.465/2017 dispõe sobre a regularização fundiária urbana e rural, incluindo instrumentos que conferem segurança jurídica aos possuidores. Ela prevê a REURB-S (de interesse social) e a REURB-E (de interesse específico), permitindo a titulação de posses legítimas sobre áreas ocupadas, mesmo sem matrícula formal.
A posse devidamente comprovada por tempo razoável e com anuência de vizinhança pode ser reconhecida por meio da legitimação fundiária (art. 23 da Lei 13.465/2017), que é um título de natureza provisória com potencial para aquisição definitiva da propriedade.
6. A Posse e a Responsabilidade Civil e Ambiental
O possuidor, mesmo sem o título de propriedade, pode ser responsabilizado civil e ambientalmente por danos decorrentes do uso irregular do bem. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a responsabilização do possuidor por danos ambientais, com base no princípio do poluidor-pagador e na função socioambiental da propriedade.
7. Jurisprudência Aplicada
“A posse exercida com animus domini, de forma pública, pacífica e ininterrupta, por prazo legal, gera direito subjetivo à aquisição da propriedade por usucapião.”
(STJ, REsp 1.391.932/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 23/10/2018).
“O direito à manutenção ou reintegração de posse é assegurado independentemente de título de propriedade, bastando a demonstração do esbulho ou turbação injusta.”
(STJ, REsp 1.213.210/MG, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 14/02/2017).
Conclusão
A posse no ordenamento jurídico brasileiro não apenas antecede a propriedade como também goza de proteção autônoma, funcional e social. Sua relevância está consagrada tanto nas normas civis quanto nas políticas públicas de regularização fundiária, tornando-se instrumento de acesso à moradia, de segurança jurídica e de inclusão cidadã. Defender a posse como instituição legítima é, portanto, promover a efetivação dos direitos fundamentais e da justiça social.
Referências
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
BRASIL. Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume 4: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 2019.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 5: Direitos Reais. São Paulo: Saraiva, 2022.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processos Possessórios. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
STJ. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência. Disponível em: www.stj.jus.brwww.stj.jus.br