
Análise Dogmática da Ação Renovatória de Locação e Seus Reflexos na Estabilidade dos Empreendimentos Empresariais
Resumo: O presente artigo científico-técnico debruça-se sobre a sistemática de proteção jurídica conferida ao ponto comercial no arcabouço normativo brasileiro, com especial atenção à Lei nº 8.245/91 (Lei do Inquilinato). Analisa-se a evolução legislativa, os requisitos dogmáticos e processuais da Ação Renovatória de Locação, as exceções à renovação compulsória e o regime jurídico da indenização pela perda do fundo de comércio. A abordagem busca oferecer uma compreensão aprofundada das nuances que envolvem a estabilidade das locações não residenciais de longa duração, ressaltando o papel do Judiciário na ponderação entre o direito de propriedade do locador e a proteção do empreendimento do locatário.
Palavras-chave: Ponto Comercial; Ação Renovatória; Lei do Inquilinato; Fundo de Comércio; Locação Não Residencial; Indenização; Estabilidade Contratual; Direito Empresarial; Direito Imobiliário.
1. Introdução: O Ponto Comercial como Objeto de Tutela Jurídica no Ordenamento Brasileiro
A dinâmica econômica contemporânea, caracterizada pela intensa competitividade e pela relevância do fator localização para o sucesso dos empreendimentos, impôs ao Direito a necessidade de tutelar um ativo imaterial de valor substancial: o ponto comercial. Este não se confunde com o imóvel em si, mas representa o conjunto de bens (materiais e imateriais) que congregam o estabelecimento, a clientela, o aviamento, a reputação e a própria localização do negócio. A perda abrupta do ponto comercial, para um empresário que dedicou tempo, investimento e esforço na sua consolidação, pode significar a inviabilização completa da atividade econômica.
No Brasil, a proteção jurídica ao ponto comercial remonta a legislações específicas, como o Decreto nº 24.150/1934 (Lei de Luvas), precursor na regulação da matéria. Atualmente, a principal fonte normativa reside nos artigos 51 a 57 da Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, a Lei do Inquilinato, que estabeleceu um regime jurídico próprio para as locações não residenciais, distinguindo-as fundamentalmente das locações residenciais. Este regime visa a equilibrar o direito fundamental à propriedade (Art. 5º, XXII, CF/88) com o princípio da livre iniciativa e a função social da empresa (Art. 170, CF/88), reconhecendo o valor intrínseco do investimento do locatário no local.
Este artigo propõe uma análise aprofundada da dogmática e da praxe jurídica que circunscrevem a Ação Renovatória de Locação e os demais institutos de proteção do ponto comercial. Serão explorados os requisitos processuais e materiais, as hipóteses de exceção à renovação compulsória, o regime de indenização e as principais nuances interpretativas que balizam a jurisprudência pátria.
2. A Ação Renovatória de Locação: Fundamentos, Natureza Jurídica e Requisitos Essenciais (Art. 51, Lei nº 8.245/91)
A Ação Renovatória de Locação consubstancia o principal instrumento jurídico posto à disposição do locatário para assegurar a continuidade da locação comercial e, por conseguinte, a manutenção do seu ponto. Sua natureza jurídica é de uma ação constitutiva-negativa, pois visa a constituir um novo contrato de locação com base nos termos do anterior, com a intervenção judicial, e negativa no sentido de obstar a retomada arbitrária do imóvel.
Para que o locatário faça jus ao direito à renovação compulsória do contrato de locação não residencial, o artigo 51 da Lei do Inquilinato estabelece um conjunto de requisitos cumulativos, cuja observância estrita é condição sine qua non para o sucesso da pretensão:
2.1. Contrato Escrito e por Prazo Determinado:
O inciso I do artigo 51 exige que o contrato a ser renovado tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado. A forma escrita é imperativa para a comprovação da existência e das condições da locação, afastando locações verbais ou aquelas que, iniciadas por escrito, foram subsequentemente desprovidas de formalidade em suas prorrogações. A exigência de prazo determinado visa a conferir segurança jurídica à relação, permitindo que as partes planejem suas atividades. Contratos por prazo indeterminado, por si só, não conferem o direito à renovatória, a menos que tenham sido precedidos por contratos determinados que, somados, atendam ao requisito de temporalidade, e desde que a ação seja proposta no interregno legal antes do término do último contrato determinado.
2.2. Prazo Mínimo de Locação Ininterrupto de Cinco Anos:
O inciso II do artigo 51 estabelece que o prazo mínimo da locação, ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos sucessivos, deve ser igual ou superior a cinco anos. A interrupção da locação, mesmo que por curto período, pode inviabilizar a soma dos prazos para o cômputo dos cinco anos. A jurisprudência tem sido rigorosa na interpretação deste requisito, exigindo a continuidade da relação jurídica locatícia sob a égide de contratos escritos. É crucial que o locatário atento não permita que seu contrato permaneça por prazo indeterminado por um período que o impeça de protocolar a renovatória no prazo legal, sob risco de preclusão.
2.3. Exploração do Mesmo Ramo de Comércio ou Indústria por no Mínimo Três Anos:
O inciso III do artigo 51 exige que o locatário esteja explorando o mesmo ramo de comércio, indústria ou atividade no imóvel, pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos. Este requisito visa a proteger o investimento do locatário na consolidação do *fundo de comércio* daquela específica atividade no local. Pequenas alterações ou adaptações na atividade principal podem ser toleradas, desde que não desvirtuem o ramo principal. A mudança substancial de atividade, por outro lado, pode descaracterizar o direito à renovatória, pois o ponto comercial estaria sendo formado para um novo empreendimento, não o anterior.
2.4. Aspectos Processuais e o Prazo Decadencial (Art. 51, § 5º):
O artigo 51, § 5º, da Lei do Inquilinato estabelece um prazo decadencial para a propositura da Ação Renovatória: a ação deve ser ajuizada no interregno de um ano, no máximo, até seis meses, no mínimo, anteriores à data da finalização do prazo do contrato em vigor. Este é um prazo peremptório e fatal. Sua inobservância acarreta a decadência do direito à renovação compulsória, independentemente da boa-fé ou do cumprimento dos demais requisitos. A natureza decadencial do prazo significa que o direito de ação se extingue se não exercido dentro do período legal. A contagem do prazo é feita de trás para frente, a partir da data de término do contrato, exigindo do locatário e de seu patrono uma diligência e um controle de prazos rigorosíssimos.
A petição inicial da Ação Renovatória deve, ainda, cumprir os requisitos específicos do artigo 71 da Lei do Inquilinato, sob pena de inépcia, como a prova do preenchimento dos requisitos do artigo 51, a indicação das condições do contrato a ser renovado, a prova do exato cumprimento do contrato em curso, a indicação clara e precisa das condições oferecidas para a renovação (valor do aluguel, encargos, etc.) e a prova da quitação de impostos e taxas.
3. Contratos por Prazo Indeterminado e a “Denúncia Vazia” em Locações Comerciais: Uma Análise Jurisprudencial
A prorrogação do contrato de locação por prazo indeterminado, nos termos do artigo 56 da Lei nº 8.245/91, ocorre quando, findo o prazo estipulado, o locatário permanece no imóvel por mais de trinta dias sem oposição do locador. Neste cenário, em locações residenciais, a regra geral é a possibilidade de denúncia vazia pelo locador (Art. 46, § 2º), permitindo a retomada do imóvel por mera notificação.
Contudo, nas locações comerciais, a situação é mais complexa e matizada. Embora o artigo 57 da Lei do Inquilinato preveja a possibilidade de denúncia vazia para locações não residenciais por prazo indeterminado, a jurisprudência tem ponderado essa faculdade quando o locatário já preencheu os requisitos do artigo 51 em algum momento da relação locatícia. A tese predominante no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e nos tribunais estaduais é que a simples passagem do contrato para prazo indeterminado não anula automaticamente o direito do locatário à proteção do ponto comercial, especialmente se ele já havia preenchido os requisitos para a renovatória.
A questão central reside na preclusão do prazo para a propositura da renovatória. Se o locatário, embora preenchendo os requisitos, deixou de ajuizar a ação no interregno legal, perdeu o direito à renovação compulsória daquele contrato. No entanto, a boa-fé objetiva, a função social do contrato e o princípio da preservação da empresa mitigam a aplicação indiscriminada da denúncia vazia em locações comerciais de longa duração. Em tais casos, o locador que pretende reaver o imóvel, mesmo que alegando denúncia vazia, pode encontrar resistência e ser compelido a indenizar o locatário pela perda do fundo de comércio, caso se demonstre o abuso de direito ou a violação de expectativas legítimas. A denúncia vazia, portanto, em locações comerciais que consolidaram um ponto, pode se converter em um mecanismo de retomada condicionada à reparação dos prejuízos causados ao fundo de comércio, afastando a ideia de que a locação comercial em prazo indeterminado é análoga à residencial para fins de denúncia.
4. Exceções à Renovação Compulsória e as Hipóteses de Retomada do Imóvel pelo Locador (Art. 52, Lei nº 8.245/91)
Mesmo que o locatário preencha todos os requisitos para a Ação Renovatória, a Lei do Inquilinato confere ao locador a faculdade de reaver o imóvel em situações específicas, listadas taxativamente no artigo 52. Estas exceções representam um contraponto ao direito de renovação compulsória, visando a proteger interesses legítimos do proprietário, mas sempre de forma controlada e passível de fiscalização judicial. As hipóteses são:
4.1. Obras Exigidas pelo Poder Público ou que Resultem em Valorização Substancial (Art. 52, I):
O locador não será obrigado a renovar o contrato se for realizar obras determinadas pelo Poder Público ou obras que visem a valorizar substancialmente o imóvel, modificando-o ou permitindo a exploração mais rentável. É fundamental que as obras sejam de tal monta que inviabilizem a continuidade da locação nas mesmas condições, e que não visem a uma mera reforma de fachada ou adaptação para o próprio locador. A prova da necessidade e da relevância das obras é ônus do locador.
4.2. Retomada para Uso Próprio, Transferência de Fundo de Comércio Existente ou Instalação de Atividade Não Similar (Art. 52, II):
Esta é a hipótese mais discutida. O locador poderá reaver o imóvel para uso próprio, ou para transferência de fundo de comércio já existente, ou para instalação de estabelecimento de espécie diversa daquela do locatário, desde que já seja proprietário do imóvel ou detentor do controle da atividade a ser explorada por sua prole, ascendente ou cônjuge. A *ratio* é evitar que o locador se aproveite do ponto comercial alheio. Para tanto, a lei exige que o novo estabelecimento não explore o mesmo ramo de comércio do locatário, salvo se a locação também envolvia fundo de comércio de locador ou se o imóvel vier a ser utilizado para a instalação de shopping center (Art. 52, § 1º). A alegação de uso próprio ou de terceiros deve ser séria e comprovada, sendo passível de fiscalização judicial a sua efetivação.
4.3. Ausência de Proposta de Renovação na Ação Renovatória (Art. 52, III – Revogado pela Lei 12.112/2009):
É importante notar que o inciso III do Art. 52, que permitia a não renovação se a proposta de renovação na ação renovatória não atendesse aos requisitos ou o locatário não provasse o cumprimento do contrato, foi revogado pela Lei nº 12.112/2009. Atualmente, a insuficiência da proposta ou o descumprimento do contrato são causas de improcedência da Ação Renovatória, e não mais hipóteses autônomas de não renovação.
É crucial que o locador, ao invocar uma dessas exceções, demonstre de forma cabal a real necessidade e a conformidade de sua pretensão com os ditames legais. A alegação fraudulenta ou o desvio de finalidade pode acarretar pesadas sanções, como veremos a seguir.
5. A Indenização pela Perda do Ponto Comercial: Regime Jurídico e Quantum Indenizatório (Art. 52, § 3º)
A proteção ao ponto comercial atinge seu ápice na previsão de indenização ao locatário nos casos em que a não renovação do contrato não se justifica ou quando o locador, após reaver o imóvel, não cumpre o destino alegado em juízo. O artigo 52, § 3º, da Lei do Inquilinato estabelece que o locatário terá direito a indenização para ressarcimento dos prejuízos e lucros cessantes que tiver que suportar, além do valor do fundo de comércio.
As hipóteses que ensejam a indenização são taxativas:
– Não Instalação do Negócio Próprio: Se o locador, no prazo de três meses da entrega do imóvel, não der o destino que alegou na ação (ex: não instalar o estabelecimento prometido).
– Exploração do Mesmo Ramo de Negócio: Se o locador utilizar o imóvel para explorar o mesmo ramo de comércio ou indústria do locatário (salvo exceções legais).
5.1. Componentes da Indenização:
A indenização pela perda do ponto comercial é ampla e visa a recompor integralmente os prejuízos do locatário, compreendendo:
– Danos Emergentes: Correspondem aos prejuízos diretos e imediatos sofridos pelo locatário, como as despesas com mudança, reformas no novo local (se houver), perda de estoque, custas processuais, honorários advocatícios, e outros gastos comprovadamente decorrentes da desocupação forçada.
– Lucros Cessantes: Referem-se aos ganhos que o locatário razoavelmente deixou de auferir em razão da perda do ponto. Isso inclui a interrupção da atividade, a perda de clientela durante o período de transição e a dificuldade de reconstituição do volume de negócios no novo local.
– Valor do Fundo de Comércio (Aviamento e Clientela): Este é o componente mais complexo e substancial da indenização. O “valor do fundo de comércio” abrange o aviamento (a capacidade do estabelecimento de gerar lucro em razão de sua organização e localização) e a clientela (o conjunto de consumidores fidelizados àquele local). A quantificação desse valor exige perícia contábil e econômica complexa, considerando faturamento, despesas, lucro líquido, valor de mercado de empresas similares, entre outros fatores. O objetivo é compensar o locatário pela perda de um ativo que ele construiu e que, se não fosse a retomada, continuaria a gerar valor.
5.2. O Ônus da Prova e a Perícia Judicial:
O ônus de provar os prejuízos e o valor do fundo de comércio recai sobre o locatário. A quantificação exata do *quantum* indenizatório é feita, via de regra, por meio de perícia judicial, que analisa documentos contábeis, projeções de faturamento e dados de mercado para estimar o valor do fundo de comércio perdido.
6. A Interpretação Jurisprudencial e os Desafios Práticos
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dos Tribunais de Justiça estaduais desempenha papel fundamental na conformação da proteção ao ponto comercial. Questões como a comprovação dos requisitos do Art. 51, a interpretação das exceções do Art. 52 e a quantificação da indenização são temas recorrentes nas Cortes.
Dentre os desafios práticos, destacam-se:
– A Rigidez do Prazo Decadencial: O STJ tem sido inflexível quanto ao prazo decadencial do Art. 51, § 5º, não admitindo exceções baseadas na boa-fé ou no desconhecimento da lei, reiterando a segurança jurídica.
– A Prova do “Mesmo Ramo”: A interpretação do “mesmo ramo” em casos de desvio de finalidade na retomada exige análise cuidadosa da compatibilidade das atividades desenvolvidas.
– A Quantificação do Fundo de Comércio: A divergência entre as partes na avaliação do fundo de comércio é comum, tornando a perícia judicial um momento decisivo do processo.
– A “Substituição de Garantias”: Em casos de renovação, o locador pode solicitar a substituição das garantias locatícias, o que pode ser um ponto de atrito.
7. Considerações Finais: Equilíbrio entre a Propriedade e a Função Social da Empresa
A Lei do Inquilinato, ao proteger o ponto comercial, busca um equilíbrio delicado entre o direito de propriedade do locador e a função social da empresa e da propriedade. Ao mesmo tempo em que reconhece a prerrogativa do proprietário de reaver seu imóvel sob certas condições, impõe-lhe o ônus de fazê-lo de forma legítima e, em muitos casos, indenizando o locatário pela perda do valor agregado ao longo dos anos de atividade.
A estabilidade da locação não residencial é vital para o desenvolvimento econômico e para a segurança dos investimentos empresariais. A Ação Renovatória, embora complexa e com prazos peremptórios, é a garantia fundamental que permite ao empresário preservar um dos ativos mais valiosos de seu negócio.
Para locatários, a diligência na gestão contractual, a observância rigorosa dos prazos legais e o acompanhamento jurídico especializado são imprescindíveis. Para locadores, a compreensão dos limites de seu direito de retomada e das potenciais consequências indenizatórias é crucial para evitar litígios onerosos e proteger seu patrimônio. A atuação preventiva e o aconselhamento jurídico adequado são as melhores ferramentas para navegar pelas complexidades da locação não residencial e garantir a proteção dos interesses de todas as partes envolvidas.
Luciana Rezende
Advogada especializada em Empresas. famílias, seus imóveis, sua herança e em preservar seus laços.
Siga nossas redes:
Google Maps | LinkedIn | Instagram | Facebook | Site Oficial | Twitter | YouTube
📞 Agende sua consulta: (31) 98881-9643
✉️ contato@lucianarezende.adv.br
🌐 lucianarezende.adv.br